(Maria do Rosário Pereira / Ricardo Cruz)
Ensaiava eu meus fados
Quando entraste desabrida.
Nós não estávamos zangados,
Mas vi-te os olhos molhados
E o dedo apontado à ferida.
Disseste que não te ligo,
Que até esqueci onde moro;
Que só vejo o meu umbigo
E, embora viva contigo,
É com o fado que namoro.
Fiquei tão desconcertado
Por te saber infeliz
Que, mesmo desafinado,
Te pedi perdão num fado
Por tanto mal que não fiz.
Desde então, se estás carente,
De coração apertado,
Passas sem medo entre gente
E, sentada à minha frente,
Pedes que cante esse fado.
(João Monge / José Marques)
Aquela casa fechada
Não tem vasos na entrada
Nem se vê luz de uma vela
Dizem que a casa está morta
Já ninguém lhe bate à porta
Nem se assoma na janela
Às vezes passam rapazes
Para mostrar que são capazes
Jogam pedras ao telhado
Esse lar que ninguém quer
Já foi de homem e de mulher
Antes de ser condenado
Aquela casa fechada
Onde o sol tinha morada
E entrava sem bater
Já foi estimada por ti
Noutros tempos que eu vivi
E não consigo esquecer
No dia em que tu partiste
A casa ficou tão triste
Desde aí que não a vejo
Fechei a porta da escada
Fiz uma cruz na entrada
E mandei a chave ao Tejo
(Pedro da Silva Martins)
O nosso amor chega sempre ao fim
Tu velhinha com teu ar ruim
E eu velhinho a sair porta fora
Mas de manhã algo estranho acontece
Tu gaiata vens da catequese
E eu gaiato a correr da escola
Mesmo evitando tudo se repete
O encontrão, a queda e a dor no pé
Que o teu sorriso sempre me consola
No nosso amor tudo continua
O primeiro beijo e a luz da lua
O casamento e o sol de Janeiro
Vem a Joana, a Clara e o Martim
Surge a pituxa, a laica e o bobi
E uma ruga a espreitar ao espelho
Com a artrite, a hérnia e a muleta
Tu confundes o nome da neta
E eu não se onde pus o dinheiro
O nosso amor chega sempre aqui
Ao instante de eu olhar pra ti
Com ar de cordeirinho penitente
Mas nem te lembras bem o que é que eu fiz
E eu com isto também me esqueci
Mas contigo sinto-me contente
Penduro o sobretudo no cabide
Visto o pijama e junto-me a ti
De sorriso meio e atrevidamente
Ao teu pé frio, enconsto o meu quentinho
E adormecendo lá digo baixinho
Eu vivia tudo novamente
(Nelson de Barros / Frederico Valério)
Na rua dos meus ciúmes
Onde eu morei e tu moras
Vi-te passar fora de horas
Com a tua nova paixão
De mim não esperes queixumes
Quer seja desta ou daquela
Pois sinto só pena dela
E até lhe dou o meu perdão
Na rua dos meus ciúmes
Deixei o meu coração
Ainda que me custe a vida
Pensarei com ar sereno
Que esse teu ombro moreno
Beijos de amor vão queimar
Saudades são fé perdida
São folhas mortas ao vento
E eu piso sem um lamento
Na tua rua ao passar
Ainda que me custe a vida
Não hás-de ver-me chorar
(Maria do Rosário Pedreira / António Zambujo)
Bem te avisei, meu amor,
Que não podia dar certo,
E era coisa de evitar.
Como eu, devias supor
Que, com gente ali tão perto,
Alguém fosse reparar.
Mas não: fizeste beicinho,
E como numa promessa,
Ficaste nua para mim.
Pedaço de mau caminho,
Onde é que eu tinha a cabeça
Quando te disse que sim?
Embora tenhas jurado
Discreta permanecer,
Já que não estávamos sós,
Ouvindo na sala ao lado
Teus gemidos de prazer,
Vieram saber de nós.
Nem dei p’lo que aconteceu,
Mas, mais veloz e mais esperta,
Só te viram de raspão.
Vergonha passei-a eu:
Diante da porta aberta
Estava de calças na mão.
(Fado Zeca – João Monge / Amadeu Ramim)
Não vale mais um dia que uma hora
Se um dia não disser isto que digo
Não há dia na vida que eu não morra
Para ter uma hora só contigo
Ai se eu te amasse mais do que sabia
Ai se eu soubesse o que já sei agora
Não vale mais a vida do que um dia
Não vale mais um dia que uma hora
Por cada amor que passa nós morremos
Morremos desse amor enquanto dura
Só quando a vida passa é que sabemos
Se o amor é doença, não tem cura
Não vale mais um dia que uma hora
Não vale mais a dor que a despedida
A hora em que tu foste embora
Não cabe num dia da minha vida
(João Monge)
Vem dar uma voltinha na minha lambreta
E deixa de pensar no tal Vilela
Que tem carro e barco à vela
O pai tem e a mãe também
Que é tão tão sempre a preceito
Cá para mim no meu conceito
Se é tão tão e tem tem tem
Tem que ter algum defeito
Vem dar uma voltinha na minha lambreta
Vê só como é bonita, é vaidosa
A rodinha mais vistosa
Deixa um rasto de cometa
É baixinha mas depois
Parece feita para dois
Sem falar nos etecetras
Que fazem de nós heróis
Eu sei que tem um estilo gingão
Volta e meia vai ao chão
Quando faz de cavalinho
Mas depois passa-lhe a dor
Endireita o guiador
E regressa de beicinho
Para o pé do seu amor
Vem dar uma voltinha na minha lambreta
Eu juro que guio devagarinho
Tu só tens que estar juntinho
Por questões de segurança
E se a estrada nos levar
Noite fora até ao mar
Paro na beira da esperança
Com a luzinha a alumiar
(Fado João Maria dos Anjos – Nuno Júdice / João Maria dos Anjos)
Há um corpo aqui deitado
Num lençol de lua branca
Como um rio que não corre.
Esse corpo abandonado
Deste canto me arranca
Outro canto que não morre.
E vi a luz mais agreste
Num fundo de madrugada
Vestir-te da cor da lua.
Despe-te um brilho celeste,
Na febre de ser amada
Quando o amor se insinua.
Não queiras dizer o nome
Ao ouvido deste canto:
Só eu sei, e o conheço
O que esconde este pronome,
Tu de quem fiz riso e pranto,
Amor que lembro, e esqueço.
(José Eduardo Agualusa / Ricardo Cruz)
Dentro de ti ouço passar
O queixume dum quissange
Uma guitarra que tange
Uma cuíca que ri.
Escuto o alegre pulsar
De Lisboa, Rio, Luanda
O murmúrio da Kianda
O cantar do bem-te-vi.
Dentro de ti vejo brilhar
Palavras, como um tesouro:
Vaga-lume, ardor, besouro.
Ouço-as em seu fulgor:
Auriflama, morança, vagar.
Palavras como um brinquedo:
Brucutu, malícia, folguedo,
Estropício, fagueiro, lavor
Dentro de ti ouço passar
O pregão da quitandeira,
A reza da benzedeira,
O golo do relator.
Escuto o alegre pulsar
D’Alfama, Leblon, Marçal,
Os tambores do carnaval,
O cantar do meu amor
(Fado Noquinhas – João Monge / Fernando de Freitas)
Eu sei, meu bem-querer, que um dia vai faltar
A luz e vou perder o pé no coração
Não há perda maior, eu sei que vou chorar
Não sei se isso é amor, não sei se isso é perdão
Eu sei que vida tem um rio pra navegar
Barquinho vai e vem e a gente sabe lá
A saudade é a foz depois é tanto mar
E só ficamos nós os dois ao deus-dará
Mas sei, meu bem querer, que perto do final
Alguém vai prometer sarar a nossa dor
Só quero a tua mão, depois sou imortal
Se não é só perdão, só pode ser amor
(João Monge / António Zambujo)
Como eu não sei rezar
Um dia pus-me a contar
Quantas estrelas há no céu
Comecei na tua rua
Naquela estrela que é tua
A estrela que deus te deu
Quanto mais estrelas contava
Mais o céu se iluminava
Mais luzinhas se acendiam
Nem o astro se cansava
Eram tantas que eu cegava
E era por ti que nasciam
Quando o coração da gente
Tem uma estrela cadente
Morre para nascer depois
Inventei uma oração
Que uma tivesse o condão
De nascer para nós os dois
Adormeci com a esperança
Até onde a vista alcança
Quando o céu é mais estrelado
Acordei à luz do sol
Afastei o meu lençol
E tu estavas a meu lado
(Pedro da Silva Martins)
Quis eu saber mais sobre o amor
E as suas mais intrincadas essências
Então fui à procura dessa tal palavra “amor”
E encontrei milhões de ocorrências
Quis saber um pouco mais ti
Do corpo que esse teu perfil encerra
Numa apurada busca depressa concluí
Há muitas mais marias cá na terra
Maria, era assim que eu recebia,
Ora prosa, poesia,
Mil declarações de amor
“Maria”, era como eu respondia,
“queria conhecer-te um dia”
E esse dia não chegou
Triste fui tentar saber de nós
Da fonte de um desejo delicado
E então deparei-me com uma frase só
“a procura teve ZERO resultados”
O mal só podia estar em mim
Um motor de busca pesquisou-me
E ficou logo claro porque te sumiste assim:
Há um tipo no brasil com o meu nome...
Maria, era assim que eu recebia,
Ora prosa, poesia,
Mil declarações de amor
“Maria”, era como eu respondia,
“queria conhecer-te um dia”
E esse dia não chegou
“Maria”, era como eu respondia,
“queria conhecer-te um dia”
Mas o nosso amor...
...crashou
(Márcio Faraco)
Não tenho nada em meu nome
Somente o fado que faço
Meu coração não tem fome
Mora num pequeno espaço
Vive da vida que passa
De amores que vão e vêm
Nada possuo em meu nome
E nem invejo ninguém
Lamento
Se não me querias por mim
Não vias
O quanto sou rico assim
Um dia virás me dizer “não vivi”
Só posso ter pena de ti
Fortuna ganhei tanto quanto perdi
Não tenho posses, nem peço
De outras paixões já sobrevivi
Sei dos meus erros, confesso
Adeus, não olho pra trás
O tempo tudo consome
Perde-se o ouro, o amor se desfaz
Não tenho nada em meu nome
O tempo tudo consome
Não tenho nada em meu nome
(RODRIGO MARANHÃO)
Uma canção chega assim
Que canta o passarinho
Numa noite qualquer
Na dança da maré
Descalça convida para um café
Uma canção chega assim
Tão perto, pertinho
De fazer cafuné, apanhar fruta com o pé
Repousar meu sonho no teu corpo
Num abraço sideral
Uma canção chega ao fim
E desfaz-se no ar
Só p'ra poder voar num sopro casual
Um dia, uma tarde, num segundo
Isso é coisa natural
(Pierre Aderne / Márcio Faraco)
A tempestade
Era tudo o que eu queria
Aceitei nosso naufrágio
Esperando a calmaria
Imaginei um verão
Sem calor e mais sereno
Janeiro então viria
Tão feliz quanto pequeno
Agarrei-me a cada verso, para chegar à canção
No mar de tantas palavras, sempre foi o violão
Que salvou a minha vida e fez-me enxergar a terra
Eis a minha caravela, feita de ilusões perdidas
O meu coração partido
Nunca mais vai navegar
Pescador proibido
De voltar seus olhos pro mar
Ex-pirata, ex-bandido
Sem tesouros p’ra pilhar
Velas guardadas do vento
Só histórias p’ra contar
Só histórias p’ra contar